Carta Para a Minha Neta
Agora que você fez dez anos, quero
lhe escrever sobre algo que é muito importante para mim. Você já se perguntou
sobre como sabemos as coisas que sabemos? Como sabemos, por exemplo, que as
estrelas, que parecem pequenos pontos no céu, são na verdade grandes bolas de fogo como o Sol e ficam muito longe? E como sabemos que a
Terra é uma bola menor, girando ao redor de uma dessas estrelas, o Sol?
A
resposta para essas perguntas é "provas". Às vezes "prova"
significa realmente ver (ou ouvir, ou sentir, cheirar...)
que algo é verdade. Astronautas viajaram longe o suficiente da Terra para ver
com seus próprios olhos que ela é redonda. Às vezes nossos olhos precisam de
ajuda. A "estrela-d'alva" parece uma sutil cintilação no céu, mas com um telescópio você
pode ver que ela é uma linda bola - o planeta que chamamos de Vênus. Uma
coisa que você aprende diretamente vendo (ou ouvindo, ou cheirando...) é
chamada de observação.
E é
observando que percebemos tantas coisas diferentes, ideologias, religiões,
etc... todas acreditam em visões diferentes, então, certamente nem
todas podem estar certas. O homem parece
achar que isso não é um problema, e nem tenta fazê-las discutir suas diferenças entre
si. Mas não é isso que quero enfatizar no momento. Eu simplesmente quero analisar de onde vieram as crenças. Vieram da tradição. Tradição
significa crenças passadas do avô para o pai, deste para o filho, e assim por
diante. Ou por meio de livros passados através das gerações ao longo dos
séculos. Crenças populares frequentemente começam de quase nada; talvez alguém
simplesmente as invente, como as histórias sobre Thor e Zeus. Mas depois de terem sido
transmitidas por alguns séculos, o simples fato de serem tão antigas as faz
parecer especiais. As pessoas acreditam em coisas simplesmente
porque outras pessoas acreditaram nessas mesmas coisas ao longo dos séculos.
Isso é tradição.
O
problema com a tradição é que, independentemente de há quanto tempo a história
tenha sido inventada, ela continua exatamente tão verdadeira
ou falsa quanto a história original. Se você inventar uma história que não seja
verdadeira, transmiti-la através de vários séculos não vai torná-la verdadeira!
A
maioria das pessoas na Inglaterra foi batizada pela Igreja anglicana, mas esse
é apenas um entre muitos ramos da religião
cristã. Há outras divisões, como a ortodoxa russa, a católica romana e as
metodistas. Todas acreditam em coisas diferentes. A religião judaica e a
mulçumana são um pouco diferentes; e há ainda diferentes tipos de judeus e mulçumanos. Pessoas que acreditam em coisas um pouco diferentes umas
das outras vão à guerra por causa das discordâncias.
Então você talvez imagine que eles têm boas razões - provas - para acreditar
naquilo que acreditam. Mas, na realidade, suas diferentes
crenças são inteiramente decorrentes de tradições.
Vamos falar sobre uma tradição em
particular. Católicos romanos acreditam que Maria, a mãe de Jesus, era tão
especial que ela não morreu, mas acendeu ao Céu. Outras tradições cristãs
discordam, e dizem que Maria morreu como qualquer pessoa.
Outras religiões não falam muito nela e, de modo diferente dos católicos
romanos, não a chamam de "Rainha do Céu". A tradição segundo a qual o
corpo e Maria foi levado ao Céu não é muito antiga. A Bíblia não diz nada sobre como ou quando ela nasceu; aliás, a pobre mulher mal é mencionada
na Bíblia. A crença de que seu corpo foi levado ao Céu não foi inventada até
cerca de seis séculos após a época de Jesus. No início, só foi inventada, da
mesma forma que qualquer história, como "Branca de
Neve". Mas, no transcorrer dos séculos, ela se tornou uma tradição e as
pessoas começaram a levá-la a sério simplesmente porque a história havia sido
transmitida ao longo de tantas gerações. Quanto mais velha a tradição se tornava,
mais as pessoas a levavam a sério. Ela foi por fim escrita como uma crença
católica romana oficial muito recentemente, em 1950. Mas a história não era
mais verdadeira em 1950 do que quando foi inventada, seiscentos anos após a
morte de Maria.
Vou
voltar à tradição no fim de minha carta, e olhá-la
de outro modo. Mas antes preciso tratar das outras duas más razões para crer em
alguma coisa: autoridade e revelação.
Autoridade
enquanto razão para crer em algo significa acreditar porque alguém importante
ordenou que você acreditasse. Na Igreja católica
romana, o papa é a pessoa mais importante, e as pessoas acreditam que ele deve
estar certo só porque ele é o papa. Num dos ramos da religião muçulmana, as
pessoas importantes são velhos barbados chamados de aiatolás. Muitos muçulmanos se dispõem a cometer assassinatos simplesmente
porque aiatolás de um país distante deram essa ordem.
Quando digo que só em 1950 os
católicos romanos foram finalmente informados que tinham que acreditar que o
corpo de Maria havia subido para o Céu, quero dizer que em
1950 o papa disse que isso era verdade, e então tinha que ser verdade! É claro
que algumas coisas que o papa disse ao longo de sua vida devem ser verdade e outras não. Não há nenhuma boa razão para você
acreditar em tudo que ele diz mais do que você haveria
de acreditar nas coisas que muitas outras pessoas dizem, só porque ele é o
papa. O papa atual ordenou às pessoas que não controlasse o número de filhos
que vão ter. Se sua autoridade for seguida com a obediência que ele deseja, os resultados poderão ser uma terrível escassez de alimentos,
doenças e guerras, causadas por superpopulação.
É claro que, mesmo na ciência, às
vezes nós mesmos não vemos as provas e temos de acreditar no que foi dito por
outra pessoa. Eu não vi, com os meus próprios olhos, que a luz
viaja à velocidade de 300 mil quilômetros por segundo. Mas acredito em livros
que me dizem qual é a velocidade da luz. Isso parece "autoridade".
Mas na realidade é muito melhor que autoridade, porque as pessoas que escreveram o livro viram as provas, e qualquer um de nós pode examinar as
provas com atenção no momento que quiser. Isso é muito confortante. Mas nem
mesmo os padres afirmam que há provas para a história de que o corpo de Maria
subiu para o Céu.
A
terceira má razão para acreditar em algo é
"revelação". Se você tivesse perguntado ao papa, em 1950, como ele
sabia que o corpo de Maria tinha subido ao Céu, ele provavelmente teria dito
que isso lhe fora revelado. Ele se fechou num quarto e rezou, pedindo
orientação. Sozinho, ele pensou e pensou, e na sua
intimidade teve mais e mais certeza de suas ideias. Quando pessoas religiosas têm uma simples sensação de que algo deve
ser verdade, mesmo que não haja provas de que o seja, eles chamam sua sensação
de "revelação". Não só os papas afirmam ter
revelações. Isso também acontece com muitas pessoas religiosas. É uma de suas
principais razões para acreditar naquilo que acreditam. Mas isso é bom ou ruim?
Suponha
que eu lhe dissesse que seu cachorrinho está morto. Você provavelmente ficaria muito
triste, e talvez dissesse: "Você tem certeza? Como você sabe? Como
aconteceu?". Suponha então que eu respondesse: "Na verdade, eu não
sei se Chuco-Chuco está morto. Eu não tenho provas. Só
tenho uma sensação esquisita, bem dentro de mim, de que ele está
morto". Você ficaria muito zangada comigo por tê-la assustado, porque você
sabe que uma "sensação" por si só não é uma boa razão para acreditar
que um cachorro está morto. Você precisa de provas. Todos temos sensações e
pressentimentos de tempos em tempos, e descobrimos
que às vezes estavam certos, às vezes não. De qualquer forma, pessoas
diferentes podem ter sensações opostas, então como decidir quem teve a intuição
correta? O único jeito de ter certeza de que um cachorro está morto é vê-lo morto, ou ouvir que seu coração parou de bater, ou obter
essa informação de uma pessoa que viu ou ouviu alguma prova de que ele está
morto.
As
pessoas às vezes dizem que devemos acreditar em sensações íntimas, senão você
nunca teria certeza de coisas como "Minha esposa me
ama". Mas esse é um argumento ruim. Pode haver muitas provas de que alguém
ama você. Durante todo o dia em que você está com alguém que a ama, você vê e
ouve pequenas provas, que afirmam ou negam sua hipótese, e elas se somam. Não é somente uma sensação
interior, como a sensação que os padres chamam de revelação. Há outras coisas
para apoiar a intuição: olhares, um tom carinhoso de voz, pequenos favores e
gentilezas; tudo isso serve de prova.
Certas
pessoas têm forte sensação de que alguém as ama sem que isso
esteja baseado em provas, e então é provável que estejam completamente
enganadas. Há pessoas com uma forte intuição de que um astro do cinema está
apaixonado por elas, mas na realidade o astro de cinema nem sequer as encontrou. Pessoas assim são doentes da cabeça. Sensações íntimas ou
intuições precisam ser apoiadas por provas, senão você simplesmente não pode
confiar nelas.
As
intuições são valiosas na ciência também, mas só para lhe dar ideias que você então testa, procurando provas. Um cientista pode ter um "pressentimento" sobre
uma ideia que ele "sente" estar correta.
Por si só, isso não é uma boa razão para acreditar nela. Mas pode ser uma razão
para passar algum tempo fazendo experimentos, ou à busca de provas. Cientistas usam a intuição o tempo todo para ter ideias. Mas elas não valem nada até que sejam apoiadas por provas.
Eu
prometi que voltaria à tradição, para examiná-la de outro modo. Quero explicar
o que a
tradição é tão importante para nós.
Todos os animais são construídos (pelo processo chamado de evolução) para sobreviver no local em que seus semelhantes vivem. Leões
são construídos para sobreviver nas planícies da África. O lagostim é
construído para sobreviver na água doce, enquanto as lagostas são adaptadas para a vida na água salgada. As pessoas também são animais, e somos
construídos para viver bem no mundo cheio de... Outras pessoas. A maioria de nós não caça para obter comida, como as lagostas
ou os leões; nós a compramos de pessoas que, por sua vez, a compram de outras pessoas. Nós "nadamos" num "mar de
pessoas". Assim como um peixe precisa das brânquias para sobreviver na
água, as pessoas precisam do cérebro que as torna capazes de se relacionarem
umas com as outras. Assim como o mar está cheio de água
salgada, o mar de pessoas está cheio de coisas difíceis de aprender. Como a
linguagem.
Você fala inglês, mas alguma colega de intercâmbio fala espanhol.
Cada um de vocês fala a língua que lhes permite "nadar" no seu
"mar de pessoas". A linguagem é transmitida
por tradição. Não há alternativa. Na
Inglaterra, Chuco-Chuco é a dog. Na Alemanha, ele é ein Hund.
Nenhuma dessas palavras é mais correta ou verdadeira do que a outra. As duas
foram transmitidas ao longo do tempo, só isso. Para serem boas em "nadar no seu mar de pessoas", as crianças têm que aprender a língua de
seu país, e muitas outras coisas sobre o seu povo; e isso só quer dizer que
elas precisam absorver, como um algodão, uma
enorme quantidade de informações sobre tradições (lembre que essas informações são aquelas passadas dos avós para pais e deste para filhos).
O cérebro da criança tem que absorver informações sobre tradições. Não é de se
esperar que a criança consiga separar a informação boa e útil, como as palavras
de uma língua, das informações ruins e tolas como acreditar
em bicho papão, velho do saco, monstros de armário,
demônios e seres imortais.
É uma pena - mas não deixa de ser assim - que, por serem sugadoras da
informação sobre tradições, as crianças possam acreditar em qualquer
coisa que os adultos lhes digam. Não importa se é falso ou verdadeiro, certo ou
errado. Muito do que os adultos dizem é verdadeiro e baseado em provas, ou pelo
menos sensato. Mas se parte do que é dito é falso, tolo ou até malvado, não há nada para impedir as crianças de acreditarem naquilo
também. E quando as crianças crescerem o que farão? Bom, é claro que contarão
as histórias para a próxima geração de crianças. Então, uma vez que uma idéia
se torna uma crença arraigada - mesmo que seja completamente falsa
e nunca tenha havido uma razão para acreditar nela, pode durar para sempre.
Será isso o que aconteceu com as religiões? A crença de que há um só Deus ou deuses, crença no Céu com muito vinho e virgens, crença em Tupã, no inferno, que
Jesus nunca possuiu um pai humano, que as orações são
respondidas, que agua se torna vinho e vinho se torna sangue - nenhuma dessas crenças
é apoiada por boas provas. E, no entanto, milhões de pessoas acreditam nelas.
Talvez isso ocorra porque elas foram levadas a acreditar
nessas coisas quando eram tão jovens que aceitavam em qualquer coisa, em coelho de páscoa ou em Papai
Noel.
Milhões de pessoas acreditam em coisas bem
diferentes, porque diferentes coisas lhes foram ensinadas quando eram crianças.
Coisas diferentes são ditas para crianças idianas, japonesas, muçulmanas e cristãs, e todas
crescem totalmente convencidas de que estão certas
e as outras erradas. Mesmo entre cristãos, católicos romanos acreditam em
coisas diferentes dos anglicanos ou de pessoas como os shakers [adeptos da
Igreja milênio] ou quacres, mórmons ou Holy Rolers, e todos estão plenamente
convencidos de que estão certos e os outros errados.
Acreditam em coisas diferentes exatamente pela mesma razão que você fala inglês
e sua colega fala espanhol. Ambas as línguas são, em seu próprio país, a língua certa para se
falar. Mas não pode ser verdade que religiões diferentes
estão corretas em seus próprios países, pois religiões diferentes afirmam que
coisas opostas são verdadeiras. Maria não pode estar viva na Irlanda do Sul (um
país católico) e morta na Irlanda do Norte (que é protestante).
O que podemos fazer sobre tudo isso? Não é fácil para você fazer
alguma coisa, porque você só tem dez anos. Mas você pode experimentar o
seguinte. Da próxima vez que alguém lhe disser algo que parecer importante,
pense: "Será que isso é o tipo de coisa que as pessoas sabem por causa de provas? Ou será o tipo de coisa em que as pessoas acreditam só por
causa de tradição, autoridade ou revelação?". E, da próxima vez que alguém
lhe disser que uma coisa é verdade, por que não se perguntar: "Que tipo de prova
há para isso?". E, se os argumentos não puderem lhe dar uma boa resposta, eu
espero que você pense com muito carinho antes de acreditar em qualquer palavra
daquilo que foi dito.
De seu querido avô.
Essa carta, minha neta, foi originalmente escrita por Richard Dawkins,
um professor da Universidade de Oxford; Que se sentiu preocupado com o que a
filha poderia entender do mundo, achei muito interessate e até me senti no
lugar dele, pois o que ele disse, certamente é o que eu diria. Adaptei o texto para
você, que agora, ainda nem nasceu.
Sua mãe,
Ariel sempre foi uma boa menina, tive orgulho dela desde que soube que viria ao
mundo. E tenho certeza que ela está dando a você
tudo àquilo que eu quis dar a ela, e certamente
muito do que eu dei. Dentre todas as coisas mais
importantes, uma em especial, o esclarecimento, pra mim
foi a primeira que achei mais importante ter. Essa carta traz um pouco para que
você possa pesar as coisas que te dizem.
Gostaria de escrever um manual que te guiasse a viver no mundo, mas
seria muito cansativo fazê-la ler. Vou te ensinar coisas,
através de tua mãe e tenho certeza que ao longo de tua vida,
você vai ouvir “seu avô dizia isso” ou “seu avô uma vez me disse...”, e é nessa
certeza que fico feliz de estar em tua vida, ainda que eu não esteja mais “na vida”. As coisas e as pessoas aparecem e um dia tem como certo, desaparecer.
E é exatamente o que as pessoas dizem que fazem saber que passaram por esse
mundo.
Vivemos em tempos difíceis, eu desde que nasci não tive uma vida fácil,
para tua mãe também. Vivemos um mundo de transformações e as pessoas não tinham certeza de quase
nada. A insegurança fazia com que se individualizassem, e que a partir disso as
boas relações ficassem raras. Que as pessoas de confiança pudessem a qualquer
momento tornarem-se o oposto.
Desejo firmemente que o mundo que você herdou seja melhor do que o que
temos. Que as pessoas tenham percebido a tempo que o rumo que tomavam era
errado. Estou fazendo tudo o que posso para deixar para você o melhor.
Gostaria de pedir uma coisa: Escute tua
mãe, ela aprendeu, ao longo de muitos anos (e ainda está aprendendo, por você)
a viver. Tudo o que ela diz para você, mesmo as coisas que possam parecer
ruins, a princípio, tenha certeza que é o melhor para você. Nada do que ela
fizer para você terá um objetivo diferente do de cuidar de
tua vida.
Amo muito você.
Comentários