A retórica e a dialética perfeitas dO Mestre Caesar Sobreira

Pensar não dói e faz bem à saúde

(Extraído do site do Jornal do Commércio)

por CAESAR SOBREIRA

"alomniez, calomniez! Il en restera toujours quelque chose."

De todo lamentável o artigo-catarse do atormentado poeta Marcos Cordeiro, publicado neste Cardeno C (8/3/98), como tentativa de réplica do meu artigo "Além do bem e do mal" (J.C., 1/3/98), onde questionei a fragilidade filosófica do poeta na sua cruzada - confortavelmente extemporânea - contra o cangaço e a ereção de uma estátua do Capitão Virgulino Ferreira, que era "um pernambucano ilustre que viveu a aventura do cangaço e morreu com honra", no dizer de Chateubriand.

A resposta do poeta, virulenta em todos os sentidos, primou por qualificar-me ideologicamente como marxista, politicamente como stalinista, e cientificamente como freudiano. Tríplice e crasso equívoco.

O poeta, ferido na sua vaidade e no seu ego infantil devido às criticas que seu artigo suscitou, preferiu esquivar-se de uma edificante polêmica filosófica sobre a natureza, a economia e a dinâmica das forças contrárias (mas não contraditórias) representadas pelo bem e pelo mal.

Sem querer, ou sem poder, inscrever-se no espaço epistêmico para desde o locus do Logos - refutar minhas colocações, o poeta (C)ordeiro demostrou ser um espírito anti-pólemos ("pólemos é, de todas as coisas, pai; de todas, rei; de uns fez deuses; de outros, homens", ensinou o filósofo obscuro de Éfeso).

Ignorando o combate dialético das idéias, através do qual até mesmo as posições mais antitéticas e antípodas podem confrontar-se para assim, como resultado das fricções das verdades (sempre parciais) enunciadas, expressas nas teses e nas antíteses, emerjam coruscantes a sínteses reveladoras do caráter civilizacional da polêmica.

Considerando-se impotente para adentrar nas sutilezas do debate das idéias sobre um tema polêmico, em cujo arcabouço filosófico está a sutil questão do bem e do mal, o poeta optou pela fácil e frágil tática de, em primeiro lugar, impor no título ("Não dá para discutir com fanáticos") a expressa negativa da discussão, excluindo o Outro através da imposição de um épiteto também equivocado.

Para esquivar-se de discutir as questões levantadas pelo meu artigo, Marcos Cordeiro preferiu proferir desqualificações pessoais, além de evocar um antigo confronto que mantive com uma universidade local, para, com isso, mascarar sua inabilidade no trato das questões teóricas indicadas em meu artigo deflagrador da sua dispepsia mental.

Evadindo-se da responsabilidade intelectual de todo aquele que escreve e publica, posto que ao expor-se o escritor deve estar preparado para receber críticas, o pobre poeta refugia-se na evocação de 65 escritores em um artigo de pouco mais de duas laudas. Não será muita citação para pouco e parco conteúdo? Nem José Guilherme Merquior chegou a tanto! Só poetas foram 58 nomes pinçados sem nenhum critério: da safadinha Safo à doce Celina de Holanda, do preclaro Homero ao popular Lourival Batista, coube de tudo. Mas, para que tanto esforço pseudoenciclopédico? Através da barreira de fumaça levantada pelos nomes dos ilustres poetas evocados, o senhor Marcos Cordeiro procurou esconder-se e esquivar-se de responder às questões levantadas, o que é assaz revelador da desarticulação teórica subjacente aos seus textos sobre o cangaço.

O esforçado autor emite juízos de valores sobre o fenômeno do cangaço, mesmo sem possuir uma fundamentação antropológica, sociológica e histórica do objeto de estudo. De qual investigação, validada cientificamente, ele retirou sua certeza de que Lampião "é reconhecido como bandido por grande parte do povo do Nordeste"?

O que este autor fez foi enfileirar uma série de doxa, de opiniões a respeito do cangaço, para chegar ao que desejava: expressar seu desacordo com a ereção de uma estátua a Lampião. Legítimo, desde logo, é seu direito de ter opniões e de publicá-las. Entretanto, este direito garantido constitucionalmente não o torna inume às críticas. Na verdade, os autênticos pensadores desejamos todo o contrário: a polêmica é a seiva de sofos.

Sem o bom combate das idéias o mundo seria insosso e a ciência, a filosofia e a arte não evolucionariam. O silêncio sepucral das concordâncias, a paz dos pobres de espírito e de intelecto, a mediocridade que reina entre os que genuflexão como meio de conquistar uma sinecura nas instituições do Estado, são como caldo de cultivo para a ignorância, para a insensatez e para a aleivosia.

Mas tudo isso tem cura: como certa vez disse um poeta da terra, pensar não dói e faz bem à saúde. Só que para exercer a libertária (r)evolução do pensamento, é conditio sine qua non estar desprendido de verdades absolutas e estar aberto à possibilidade, ao menos hipotética, de que o Outro também tem razões, pois a razão - assim como a Verdade - é múltipla e molecularmente dispersa, transpassando ainda que inicidentalmente os discursos emitidos (mesmo que de topoi diferenciados e, inclusive, antagônicos.

Seria necessário descer à planície do pensamento primitivo, para responder aos ataques pessoais de Marcos Cordeiro. Coisa que não farei porque, por mais forte que haja sido a minha crítica ao seu artigo, em nenhum momento adentrei em questões pessoais, pois tenho respeito pela pessoa humana do senhor Cordeiro, embora não possa dizer que seus pensamentos, expressos nos artigos publicados neste J.C., mereçam a mesma consideração.

Por considerar seus artigos falhos e equivocados na sua valoração e, principalmente, por considerar falsa a sua eficiência topológica e topográfica em estabelecer qual é o lado "bom" e qual e o lado "mau" na história do cangaço e da humanidade, é que escrevi uma crítica ao seu pensamento, jamais à sua pessoa. Por isso é que posso voltar a este jornal, para reafirmar as críticas anteriores e, aproveitando a circustância, fazer correções na cantilena indigesta desse poeta parca de inspiração.

A acusação de que os Direitos Humanos servem de proteção aos bandidos é o pai-nosso da cartilha ideológica de Amaral Neto, de Paulo Maluf, de Wandecock Wanderley e congêneres. Direitos Humanos são direitos de todos. Desde a Charta Magna, de João Sem Terra, até a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (que este ano completa 50 anos), passando pela Bill of Rights e pela Declaração da Assembléia Nacional Francesa, todos as declarações, cartas e tratados de Direitos Humanos são unânimes em assegurar a igualdade de todos no exercício inalienável de tais direitos.

Desde esta perspectiva, os Direitos Humanos protegem a dignidade humana de todas as pessoas, inclusive daqueles que vivem à margem da lei, mas também sem excluir todas as demais categorias sociais, tais como policiais, militares, estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas e até mesmo poetas e poetastros.

A bem da mais translúcida verdade, deve o poeta contricante ficar sabendo que o episódio no qual um jovem tentou cobrir o ataúde de um seqüestrador com a bandeira nacional foi publicamente repudiado pelo Centro Brasileiro de Memória Política (Grupo Tortura Nunca Mais). Assim sendo, o senhor Marcos Cordeiro não pode imputar ao TNM de Goiânia a responsabilidade por um ato desvairado de alguém que agiu em nome próprio e não do coletivo que integra.

Por último, mas não menos importante, devo informar ao senhor Marcos Cordeiro que sou professor, sem aspas, de uma universidade federal, cargo para o qual fui aprovado em concurso público de provas e títulos, obtendo o primeiro lugar. Agora, cá pra nós, esse negócio de perguntar se sou "capaz de emitir juízo próprio" ou "fazer um verso sequer", é uma atitude pueril. O que posso esclarecer, para informação de tão desinformado poeta, é que tenho alguns livros, teses, prêmios literários, artigos e ensaios publicados no Brasil, Portugal, Espanha, Israel, Estados Unidos e Canadá que testemunham a meu favor, no que se refere ao pensamento original.

E sobre a capacidade de versejar, que bobagem, todos escrevemos uns versos soltos por aí, pela vida, para agrado e reverência das mulheres. Agora, qualidade da poesia é outra coisa, que não vem ao caso agora, senão teríamos que fazer um estudo crítico da poesia de Marcos Cordeiro, e aí então ele poderia ficar verdadeiramente enfurecido.

Por outro lado, sugiro que mesmo no epicentro de um confronto intelectual mais apaixonado, o respeito à pessoa do oponente deve pairar acima e além das divergências teóricas, por mais duro e sofrido que seja este exercício. Isto é uma exigência da própria convivência intelectual porque, caso contrário, estaríamos volvendo aos tempos de Lampião, quando a validade das opinões contrárias era testada na ponta dos punhais.

Felizmente tenho a certeza que Marcos Cordeiro, pacífico como deve ser seu nome, é um homem sensato apesar de ter escrito com tanta falta de sensatez esses seus últimos artigos.

Não obstante, confiando na capacidade auto-regenerativa do ser humano, espero e confio que o poeta não voltará a atacar minha pessoa, nem tornará a utilizar o expediente fascista de sair por aí procurando colher informações sobre mim, porque ao economizar esforços dispendidos em tão desprezíveis recursos, ele poderá concentrar suas energias e utilizá-las na busca de respostas para a série de questões filosóficas que propus no meu artigo.

De todos modos não será inútil fazer recordar ao aprendiz de polemista o bordão do filósofo das marteladas, o irascível Friedrich Wilhelm Nietzche, que proclamou: "Mais respeito com quem sabe".

Caesar Sobreira é escritor e professor universitário, desenvolvendo atividades acadêmicas em diversas instituições, dentro e fora do Brasil. Resposta ao artigo do pintor e poeta Marcos Cordeiro, publicado no domingo anterior, nesta seção. Com este texto retomamos, a pedido de leitores, o debate, que tem desdobramento com a carta-artigo publicada na página 7.

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