O valor da preservação

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Marcos Miliano *

A Ilha de Tatuoca está a 52 km de Recife, na Baía de Suape. Lugar paradisíaco, de areias ainda brancas e de pessoas quase felizes. Mais de 50 famílias em Tatuoca vivem como se vivia por aqui há 200 anos. Uma comunidade de casas de taipa, que recebem o “progresso” na velocidade da luz, com a chegada da energia elétrica a pouco mais de dois anos, veio também o DVD, a TV e outros eletrodesejáveis. No entanto as pessoas de lá, ainda vivem sustentavelmente na natureza quase intocada, trabalhando entre o mar e o rio, na coleta de frutos, pesca e agricultura familiar.

Antes de ser criada uma ligação física com o continente, pelas obras do primeiro estaleiro, chegava-se em Tatuoca, a partir do mais próximo núcleo urbano, trilhando seis quilômetros pelas estradinhas de terra, até o mangue, depois (na parte mais estreita do rio) cruzando 900m numa jangadinha, até novamente o mangue, e então andar até a casa mais próxima. Esse isolamento deixou a comunidade parada no tempo, imune às influências diretas da cidade.

A ilha não tem ruas, saneamento ou posto de saúde, mas tem uma escolinha que também é o lugar de reunião da associação de moradores, e onde se consegue água potável. Tem ainda com menos recursos que as outras escolas do entorno, ensina até a quarta série, mas os alunos normalmente enfrentam dificuldade quando chegam a 5ª série, em Ipojuca ou Cabo. Dificuldade em ler.

A comunidade agora, semicapitalista preserva ainda a boa vontade, a hospitalidade e outras características comuns ao “bom selvagem”. Quem vive ali, o faz por uma opção naturalmente afetiva e espiritual, fazendo igual aos primeiros moradores que chegaram lá antes de 1645.

Encostada a si, está o Porto de Suape, um gigante com seu moderno terminal de cargas e indústrias, capitalista, totalmente dotado de toda infraestrutura que a tecnologia pode proporcionar. É responsável pelo êxito de Pernambuco e dos Governos nos anos vindouros, pela oferta do crescimento econômico, fazendo essa parte do Brasil, mais uma vez ser vista pelo mundo, como no período colonial.

Não estou aqui para dizer que Suape não é bom para Pernambuco. Mas o que me preocupa é essa política ambiental particular de Suape, e também sua política com as comunidades que estão e estavam onde é hoje o Complexo Industrial Portuário. Mais de uma dezena foi removida nos últimos trinta anos, resta a comunidade de Nsª Senhora do Ó e Tatuoca. Comunidades tradicionais, descendentes de nativos, moradores há várias gerações.

É irreversível o processo de degradação da ilha, e logo não será um bom lugar para viver. O Rio Tatuoca, agoniza e logo, o também tradicional e mais conhecido, Rio Massangana também morrerá. Os moradores da comunidade deverão sim, sair para a vila que se encomenda para eles ou para outro lugar, que seja mais feliz.

Não quero nem falar da valoração do ambiente, agora um ativo da economia ecológica, um bem para a população em geral. Mas quando o debate contemporâneo gira em torno de preservação ambiental, com a criação de instrumentos econômicos que articulam e premiam a conservação da vegetação, e benefícios tributários e creditícios são destinados a estimular o mercado de serviços ambientais, por redução das emissões de gases do efeito estufa, pelo não desmatamento e não degradação fica difícil deixar de associar esses benefícios aos moradores, pela preservação da ilha, que ainda guarda muita mata atlântica e todo o mangue originais, do restinho que sobrou no país. Mas eles não têm a promessa de ganhos pecuniários justos, nem por seus sítios, quanto mais pela preservação!

Não quero falar do código florestal, que protege a ilha, ou da proteção que recebe os vestígios arqueológicos no seu solo, ainda por prospectar. Nem quero falar da obrigação do Governo de “atender as necessidades das pessoas, permitindo melhores condições de vida, sem comprometer a qualidade ambiental e o atendimento das necessidades das gerações futuras”. Só quero que vejam que a ilha provinha qualidade de vida, comida em abundância, segurança, manutenção da cultura tradicional, para seus moradores que por sua condição de não letramento, não conseguirão o mesmo de nenhum emprego que conquistem ou que seja “arranjado”.

Quero que olhem para os idosos da comunidade que choram toda vez que se fala em realocação. A ilha é referência de vida, lugar afetivo de todas as famílias, é lugar histórico da chegada de colonizadores, do genocídio dos Caetés, de batalhas dos holandeses, do tráfico de escravos e sítio pré-histórico de tribos indígenas. As primeiras terras distribuídas em Pernambuco, pelo primeiro donatário incluíam a ilha no lote destinado a Tristão de Mendonça, possível fundador do Engenho Massangana.

Agora receberá em suas terras o segundo estaleiro, isso quer dizer mais degradação, barulho, poeira, mais “peões” invadindo os sítios, retirando frutos, sujando, badernando, insultando as moças. E mais recentemente, me conta o líder da associação dos moradores, levam drogas pra lá. Edson, preocupado com a segurança da comunidade começou a restringir essa entrada de estranhos na comunidade, e agora recebe ameaças anônimas pelo celular, à sua esposa e filhos. Estão pensando em deixar tudo e sair, naturalmente intimidados pela violência.

O problema social não está apenas em Tatuoca. Suape deverá dar atenção também aos trabalhadores que vêm de outras regiões para trabalhar nas obras das empresas, esses “peões” depois de concluídas as obras, formarão mais uma favela em Pernambuco, pois vem com suas famílias, e se contabilizarmos uma média de 100 trabalhadores em cada um dos 300 canteiros de obras em Suape e entorno, teremos o caos instalado nos próximos anos.

Mas tudo isso passa longe de nós, paciente leitor. Também quem formula as políticas ou quem dirige o processo de “desenvolvimento” reinante, está alheio ao problema, não sente de dentro do ar condicionado de suas salas, o aumento da temperatura, pelo desmatamento na ilha de Tatuoca, nem a água ficando salobra nas cacimbas, ou as árvores morrendo em seus quintais. Nos passa fácil, a preocupação, pois não está acontecendo em nossas casas, nem com nossas famílias essa interferência indesejada do progresso. Talvez quando o primeiro desastre ecológico chegar às praias badaladas de Pernambuco (e vai chegar) notaremos o que renomados pesquisadores como Clovis Cavalcanti, já diziam há 30 anos.

* Bacharel em ciências sociais pela UFRPE.

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