Tatuoca, Suape e os colonizadores

Blog Ciência e Meio Ambiente

Artigo publicado no JC online em 24/06/2010


Marcos Miliano*

O tempo passa e parece que as coisas não mudam. Há quinhentos anos, chegaram aqui por essas paragens homens em grandes barcos e disseram aos nossos antepassados, nativos caetés, que essa terra era deles e que estavam trazendo a civilização (desenvolvimento). Pois hoje, exatamente ao lado do mesmo promontório de antes, o Cabo de Santo Agostinho, chegam-se senhores para os nativos, com o mesmo discurso de antes: “... estamos tomando posse dessas terras, habitadas desde sempre pelos seus... trazemos desenvolvimento e modernização para suas vidas. Somos amigos e estamos fazendo um favor em expulsá-los daqui...” Claro que não foram essas mesmas palavras, nem antes, nem agora, mas a prática sim é a mesma. Suape, afiançada pelo poder público emite o discurso semelhante ao do “colonizador” europeu da época dos descobrimentos.

A expulsão de agora é em Tatuoca, ilha ao lado do porto de Suape, a 52 km da nossa capital, que até cinco anos atrás não tinha energia elétrica, saneamento básico, ruas, jornal em circulação, nenhum desses luxos que temos. Muito menos um posto de saúde ou escola que faça letrada uma criança no terceiro ano. O que não impede que as 51 famílias restantes vivam bem, como os aqueles antepassados de séculos, num paraíso de visual e na qualidade de vida. Sua relação com a natureza sempre se deu baseada na exploração sustentável tratando-a como uma mãe, e esta lhes tratando como filhos, dando-lhes os remédios das plantas e a educação para sobreviver. Comida boa e farta – lagosta, peixe e mariscos na mesa e grande variedade de frutas na sobremesa. As casas ainda hoje são em taipa, onde até em suas paredes está a sustentabilidade. As 51 famílias serão transferidas para casas pré-moldadas de gesso, num projeto chamado de Nova Tatuoca (veja abaixo).

A organização social tradicional e sustentável de Tatuoca é exemplo de gestão, a ser imitado pelos desenvolvimentistas, mas acima de tudo guarda o desejo de manutenção da qualidade de vida, por pessoas que apesar de repetir o discurso do seu opressor: “o empreendimento é bom”, tem consciência das mudanças e de que elas não são boas para a sua vida e a de seus descendentes.

Antes da última ocupação, tem-se notícia sobre Tatuoca, através do historiador José Antônio Gonsalves de Mello, que em uma anotação num canto da página de um livro, cita um inventário onde consta a Ilha. “*Havia uma ilha desta denominação que fazia parte em 1866 do Engenho do Meio em Ipojuca: inventário de D. Joanna Maria de Deus, viúva do Senador José Carlos Mairink.”

Acontece que José Carlos Mayrink da Silva Ferrão, nascido em Vila Rica em 1771, hoje Ouro Preto, foi nomeado por carta imperial de 25 de abril de 1824, para ser presidente da Província de Pernambuco, por duas vezes em 1825 e 1827, tendo entre os governos, viajado para a corte imperial (Rio de Janeiro) a fim de assumir o cargo então vitalício de senador do Império do Brasil, de 1826 a 1846. A Sra. Joana Maria de Deus Gomes, sua esposa, era mulher muito abastada, nascida no Recife no ano de 1776 e morreu também aqui em 1866. Tatuoca sem dúvida tinha um dono.

A história recente da ilha, contada pelos moradores mais antigos, reza que Tatuoca foi comprada em leilão público no Mercado de São José no Recife, no final do século dezenove, pelo patriarca da família José Magalhães da Fonseca, que teria sido o último dono, e logo após os acertos no cartório, se foi com a família, cuidar das propriedades na Bahia, deixando um feitor responsável pela propriedade.

O que marca o direito à terra pelos moradores da Ilha é o contrato (verbal) de alienação que dividia a ilha em dois tipos de domínio: o domínio eminente, ou direto do “dono”, e o domínio útil, ou indireto, dos moradores. Essa prática é característica de uma Enfiteuse, os moradores pagavam o foro, uma espécie de aluguel sobre o imóvel, prática colonial conhecida por toda a ilha, até o final da década de 1970 - em forma de serviços, todas as segundas-feiras o trabalho tinha a produção dedicada ao proprietário. Poderiam ser trabalhos de benfeitoria ou, entre outros, o de limpeza e coleta nos coqueirais. Colhia-se de 3.000 a 5.000 cocos por mês. Quando os pais, que sempre pagavam essa “pensão” já não tinham forças, pelas limitações da idade, o filho mais velho o substituía, até que constituísse sua própria família, passando para o segundo filho mais velho, pois o outro pagaria foro pelo uso de sua família.

Se tal acordo verbal tem valia para a Justiça, é um arrendamento por prazo indeterminado dos sítios, mediante a obrigação, do morador, chefe da família de pagar o foro, certo e invariável, ao feitor que também morava na Ilha, determina o domínio útil e pleno, tratando-se, portanto de direito real - alienável e transmissível a herdeiros - de posse, uso, gozo e disposição sobre os sítios. Os direitos dos nativos são, portanto, bem amplo, mais do que os do usufrutuário, e impedem que qualquer mudança nesses parâmetros fosse tomada sem uma consulta prévia àqueles moradores. Deixou-se de cobrar o foro dos moradores, e esses deixaram de pagar, porque não tinham a quem, visto que a ilha ficou em suas mãos, depois da saída do último administrador, Sr.Borges, hoje morador de Ipojuca, já bastante idoso, foi um dos entrevistados em nossa pesquisa.

* Graduando do bacharelado de ciências sociais da Universidade Federal Rural de Pernambuco. E-mail: marcos.miliano@gmail.com.

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